Minha singela homenagem ao Grande,
Helberto Helder.
(23 Nov 1930 / 24 Mar 2015 )
Se te apreendessem minhas mãos, forma
do vento
na cevada pura, de ti viriam cheias
minhas mãos sem nada. Se uma vida
dormisses
em minha espuma,
que frescura indecisa ficaria no meu
sorriso?
- No entanto és tu que te moverás na
matéria
da minha boca, e serás uma árvore
dormindo e acordando onde existe o
meu sangue.
Beijar teus olhos será morrer pela
esperança.
Ver no aro de fogo de uma entrega
tua carne de vinho roçada pelo
espírito de Deus
será criar-te para luz dos meus
pulsos e instante
do meu perpétuo instante.
- Eu devo rasgar minha face para que
a tua face
se encha de um minuto sobrenatural,
devo murmurar cada coisa do mundo
até que sejas o incêndio da minha
voz.
As águas que um dia nasceram onde
marcaste o peso
jovem da carne aspiram longamente
a nossa vida. As sombras que rodeiam
o êxtase, os bichos que levam ao fim
do instinto
seu bárbaro fulgor, o rosto divino
impresso no lodo, a casa morta, a
montanha
inspirada, o mar, os centauros do
crepúsculo
- aspiram longamente a nossa vida.
Por isso é que estamos morrendo na
boca
um do outro. Por isso é que
nos desfazemos no arco do verão, no
pensamento
da brisa, no sorriso, no peixe,
no cubo, no linho, no mosto aberto
- no amor mais terrível do que a
vida.
Beijo o degrau e o espaço. O meu
desejo traz
o perfume da tua noite.
Murmuro os teus cabelos e o teu
ventre, ó mais nua
e branca das mulheres. Correm em mim
o lacre
e a cânfora, descubro tuas mãos,
ergue-se tua boca
ao círculo de meu ardente pensamento.
Onde está o mar? Aves bêbedas e puras
que voam
sobre o teu sorriso imenso.
Em cada espasmo eu morrerei
contigo.
E peço ao vento: traz do espaço a luz
inocente
das urzes, um silêncio, uma palavra;
traz da montanha um pássaro de
resina, uma lua
vermelha.
Oh amados cavalos com flor de giesta
nos olhos novos,
casa de madeira do planalto,
rios imaginados,
espadas, danças, superstições,
cânticos, coisas
maravilhosas da noite. Ó meu amor,
em cada espasmo eu morrerei contigo.
De meu recente coração a vida inteira
sobe,
o povo renasce,
o tempo ganha a alma. Meu desejo
devora
a flor do vinho, envolve tuas ancas
com uma espuma
de crepúsculos e crateras.
Ó pensada corola de linho, mulher que
a fome
encanta pela noite equilibrada,
imponderável -
em cada espasmo eu morrerei
contigo.
E à alegria diurna descerro as mãos.
Perde-se
entre a nuvem e o arbusto o cheiro
acre e puro
da tua entrega. Bichos inclinam-se
para dentro do sono, levantam-se
rosas respirando
contra o ar. Tua voz canta
o horto e a água - e eu caminho pelas
ruas frias com
o lento desejo do teu corpo.
Beijarei em ti a vida enorme, e em
cada espasmo
eu morrerei contigo.
Herberto Helder, 1957.